O Alienista: A Loucura Como Espelho da Hipocrisia Social
- Drica Rocha

- 26 de nov.
- 3 min de leitura
Machado de Assis nunca escreveu à toa. Ele escrevia no silêncio observador de quem entende que a sociedade revela mais do que gostaria quando acredita estar apenas conversando.
O Alienista, mesmo sendo um texto do século XIX, ainda parece ter sido escrito ontem — e não apenas pela ironia brilhante, mas pela capacidade de expor a contradição humana quando ela se acha no direito de diagnosticar o outro sem olhar para si.
Machado, no auge do seu ócio criativo elegante, certamente deixou a mente vagar para muito além de Itaguaí. E o que ele encontrou foi um tipo universal de figura: o sujeito que acredita ter a verdade absoluta sobre a normalidade. Simão Bacamarte entra em cena como o alienista — o “especialista da mente” — que se arroga o poder de definir quem é são e quem é louco. Um psiquiatra, um psicólogo, um cientista da alma que trata seus pacientes a partir de uma voz que, ironicamente, existe muito mais dentro da cabeça dele do que na cabeça dos doentes.
A genialidade de Machado está justamente aí: o homem da razão, da ciência, da cura, acaba revelando que o maior laboratório da loucura é o próprio ego humano. Bacamarte usa o discurso científico como oráculo, como lente que legitima qualquer arbitrariedade. E isso diz muito sobre como a sociedade opera até hoje.
A Casa Verde, o manicômio que ele cria, é uma caricatura da nossa tentativa de organizar o caos do mundo. Encapsula-se o diferente, o estranho, o inconveniente — não para curá-lo, mas para não ter que lidar com ele. É o sujo falando do mal lavado. É aquele que aponta o dedo justamente para desviar o olhar de seu próprio desequilíbrio.E talvez seja esse o ponto mais forte e mais atual do livro: a hipocrisia social é o verdadeiro protagonista.
Em O Alienista, todos se acham aptos a julgar a sanidade alheia, mas ninguém reconhece sua própria vulnerabilidade. O povo se revolta, depois idolatra, depois se revolta de novo — porque a massa nunca sabe ao certo o que pensa, só sabe o que reage. É a eterna dança entre obediência e rebeldia, entre autoridade e caos, entre medo e conveniência.
No fundo, Machado expõe a maior loucura de todas: a necessidade que temos de classificar, controlar e hierarquizar o comportamento humano para nos sentirmos seguros. O diagnóstico se torna arma. A ciência vira palco. A verdade vira espetáculo. E o alienista, que deveria ser o mais lúcido da cidade, é justamente quem não enxerga que sua obsessão pela normalidade revela sua própria desordem interior.
Hoje, mais de cem anos depois, continuamos vivendo dentro da Casa Verde — só que agora ela é muito maior e tem Wi-Fi. Seguimos usando discursos pseudocientíficos para justificar preconceitos, chamamos de “loucura” aquilo que não entendemos, e rotulamos pessoas em categorias rápidas e confortáveis, como se isso resolvesse a complexidade que nos assusta. A sociedade continua incapaz de admitir que a fronteira entre razão e desrazão é fina, movediça e, sobretudo, humana.
Machado, com seu riso elegante e seu bisturi narrativo, sabia disso melhor do que ninguém. O Alienista não é apenas uma sátira da ciência; é uma denúncia da nossa arrogância. É um aviso de que toda vez que acreditamos ter o controle absoluto sobre a mente alheia, estamos perigosamente próximos de perder a nossa.
O que o século XIX chamou de loucura, hoje chamamos de diferença.
E o que chamamos de normalidade, no fundo, talvez seja apenas o medo — bem embalado, bem explicado, bem racionalizado — de admitir que ninguém é completamente são.
Machado sorri.



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