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A Vida É Um Feed

A vida é um feed. Não porque o mundo tenha sido reduzido a uma tela, mas porque nós mesmos nos reduzimos a ela. Hoje, quase tudo o que vivemos só parece existir de verdade quando passa pelo filtro do compartilhamento. Se não está registrado, não aconteceu; se não repercutiu, não valeu; se não recebeu curtidas, não foi bonito o suficiente. A experiência perdeu espaço para a exibição.


O mais curioso é que ninguém acordou um dia e decidiu que seria assim. Foi um processo silencioso, quase educado. Um algoritmo nos mostrou que éramos “relevantes”, outro nos ensinou a comparar, outro nos convenceu de que estávamos sempre atrasados. E, juntos, eles fizeram algo que nenhuma ditadura conseguiu fazer: moldaram nossa identidade a partir da necessidade constante de aparecer.


Hoje, a gente não vive — a gente atualiza. Atualiza humor, corpo, rotina, opinião, conquistas, até fracassos cuidadosamente editados para parecerem esteticamente suportáveis. Viramos curadores de nós mesmos, organizando a própria existência numa vitrine infinita.

E, enquanto o feed brilha, a vida real vai ficando opaca.


O mais irônico é que as redes sociais prometiam aproximação. E até aproximam — no início. Mas, com o tempo, criam uma solidão que ninguém admite sentir. É a solidão de estar sempre rodeado por imagens, mas raramente por pessoas. De ser visto o tempo todo, mas quase nunca percebido. A solidão de responder mensagens, interagir com perfis, sustentar conexões que só existem no plano do possível, nunca no plano do gesto.


E o pior: aceitamos isso como natural. Aceitamos que os afetos sejam calculados, que a atenção seja negociada e que a relevância seja medida por números. Aceitamos o desconforto de não postar, o medo de sumir, a ansiedade de ser esquecido por um algoritmo que sequer sabe quem somos. Porque, no fim, todos temos um pavor comum: desaparecer.


A vida, que já foi tempo, agora é timeline.

Mas talvez o maior problema não sejam as redes em si — e sim o que deixamos de ser quando nos tornamos dependentes delas. Deixamos de ser profundidade para ser superfície. Deixamos de ser processo para ser resultado. Deixamos de ser presença para ser atualização.


E isso pesa. Pesa como uma cobrança silenciosa que nunca cessa: poste, mostre, prove, seja visto, não desapareça.

Só que, ao tentar não desaparecer, acabamos desaparecendo de nós mesmos.

Eu não acredito que a saída seja demonizar a tecnologia — isso seria ingênuo. As redes fazem parte do mundo, mas não precisam determinar o nosso mundo interior. A saída talvez esteja na coragem de existir fora da performance. Na ousadia de viver momentos que não foram filmados. No alívio de ser alguém que não cabe num quadradinho de 1080x1080 pixels.


A vida não precisa caber num feed.

Na verdade, nunca coube. A gente é que tentou encolher a existência até que ela coubesse.

E, aos poucos, estamos descobrindo que viver é maior — e muito mais perigoso — do que postar.


Que sentir dói mais do que editar.

Que existir exige mais coragem do que aparecer.

E que, no fim das contas, toda vez que o mundo parece pedir para sermos imagem, a vida está tentando nos lembrar que somos corpo, somos história, somos presença — não pixels.

O feed passa.

A vida fica.



GLAUCO, Glauco. Lençóis Maranhenses, Brasil, trekking. Fotografia, s.d. Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/len%C3%A7%C3%B3is-maranhenses-brasil-trekking-9000410/. Acesso em: 27 nov. 2025.
GLAUCO, Glauco. Lençóis Maranhenses, Brasil, trekking. Fotografia, s.d. Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/len%C3%A7%C3%B3is-maranhenses-brasil-trekking-9000410/. Acesso em: 27 nov. 2025.

 
 
 

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1 comentário


Jaque
Jaque
26 de nov.

Incrível e muito realista!! O que era para ser uma forma de aproximação entre as pessoas, se tornou algo extremamente prejudicial se não for moderado, podendo causar até mesmo problemas mentais. Ótimo ponto de vista! 💗

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